Recentemente, uma grande discussão aconteceu sobre a legalidade do aborto
de crianças anencéfalas e, no dia 12 de abril de 2012, foi aprovado no Brasil,
com algumas regras para a identificação correta da anomalia. Eu não sou a favor
do aborto indiscriminado, sou a favor da vida, uma vida digna, mas este assunto
precisa de discussão.
A anencefalia é uma má-formação
congênita que atinge cerca de um em cada mil bebês, portanto, ocorrem cerca de
três mil casos por ano, colocando o nosso país no quarto lugar em ocorrência da
anomalia. A palavra anencefalia significa “sem cérebro”, mas a utilização deste
termo não está totalmente correta, porque o tronco cerebral está presente. Mas
possuir o tronco cerebral não garante a vida e a sobrevivência após o parto,
que se limita a apenas algumas horas ou alguns dias. Segundo o médico docente
em genética da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em medicina
fetal, Thomaz Rafael Gollop, a chance de sobrevida por um período prolongado é
"absolutamente inviável".
Pode-se identificar esta má-formação
durante o pré-natal e, após o diagnóstico, os pais se deparam com a difícil
decisão entre vida e morte. Metade das mortes em casos de anencefalia é
provocada ainda durante a gestação e, daqueles que conseguem nascer, 99% morrem
logo após o parto, e apenas cerca de 1% pode sobreviver por dias. Segundo o
professor de bioética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, José
Roberto Goldim, "Os que sobrevivem conseguem fazer o movimento
involuntário de engolir, respirar e manter os batimentos cardíacos, já que
essas funções são controladas pelo tronco cerebral, a região que não é atingida
pela anomalia. Alguns não precisam do auxílio de aparelhos e chegam até a serem
levados para casa, mas vivem em estado vegetativo, sem a parte da consciência,
que é de responsabilidade do cérebro". Na realidade só existe o estado
vegetativo com um destino traçado.
Existem casos extremamente raros em
que a sobrevida ultrapassa o esperado, entretanto, não se trata da anencefalia
e sim de merocrania, porque existem pequenas porções de cérebro revestidas por
uma membrana que protege contra infecções. Mesmo assim, todos os casos também
culminam na morte.
O grande problema desta anomalia é que
a gravidez pode ser levada adiante normalmente e muitas vezes a mãe é
aconselhada a interromper a gravidez mesmo sem a autorização legal. No Brasil,
a interrupção era crime, pois o aborto só era permitido legalmente em duas
condições: quando a gravidez resultou de um estupro ou quando a vida da mãe
está em risco, o que não é o caso da anencefalia.
De acordo com estudo da Universidade
de Brasília, quase metade dos países membros da Organização das Nações Unidas
(ONU) permite a interrupção da gravidez nesses casos. São 94 países, entre eles
Austrália, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, Canadá, África do Sul e França. O
Brasil não podia ficar na contramão do óbvio, mesmo assim, foi um dos últimos
países no reconhecimento da legalidade de aborto anencefálico. Infelizmente, a
proibição perdura nos países muçulmanos, em parte da África e em alguns países
da América Latina.
O problema esbarra, como sempre, na
intervenção da Igreja e de grupos religiosos radicais. Um representante dos
grupos religiosos disse em entrevista a um jornal, que “Devemos dar um enterro
digno às pessoas”, e o lado emocional da mãe e da família como fica? Não está
sendo discutida a obrigação do aborto e sim o direito da mãe em interromper a
gravidez. É uma opção. A mãe religiosa radical pode ter seu filho e seguir o
procedimento religioso normal. Fato observado na fala de Marco Aurélio, relator
do Supremo, diante de um protesto que reunia cerca de 30 religiosos ligados a
grupos antiaborto. Diante da polêmica com esses grupos, o relator citou o
evangelho de São Marcos para defender a separação entre Estado e Igreja. “Dai a
Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus” e continuou “Deuses e Césares
têm espaços apartados. O Estado não é religioso. Tampouco é ateu. É
simplesmente neutro”.
Mas esta atitude de grupos religiosos
não é novidade. Podemos lembrar a intervenção da Igreja contra a utilização da
camisinha para evitar o flagelo da Aids na África e na aprovação da utilização
das células troncos embrionárias para estudos que poderão salvar tantas vidas
ou permitir vidas dignas a muitas pessoas. E não estou voltando no tempo,
porque a Igreja teria que pedir muitas desculpas à humanidade. O problema é que
muitos fiéis não são bem informados ou possuem pouca memória, voltando a soltar
suas velas ao vento na contramão da vida digna. Sugiro uma leitura de outro
artigo que fortalece o que aqui falo (O pecado do fiel).
O não reconhecimento do aborto
anencefálico seria um atraso da civilização humana sem quaisquer condições de
medida. Seria a sobreposição das tradições sobre a ciência, das crenças sobre a
dignidade humana. A Organização Mundial da Saúde reconhece a anencefalia como
doença incompatível com a vida, portanto, o aborto anencefálico não é uma
eutanásia pré-natal arbitrária, e não ofende o princípio da dignidade humana
(do feto). É uma ofensa à dignidade da gestante quando não é permitido.
Não se pode confundir Direito com
religião. Ciência é evidência e razão, diferente da crença que deve se limitar
à fé. A religião não pode contaminar o Direito. As crenças não podem ditar
regras superiores à ciência. Não se pode, em pleno terceiro milênio, conceber
que um juiz possa ditar sentenças "segundo a dogmática cristã... de acordo
com suas convicções religiosas". Entretanto, a separação do Estado frente
à Igreja não prega o ateísmo. Cada um é livre para professar sua religião e ter
suas crenças ou não acreditar em absolutamente nada. Só não se pode conceber,
em pleno século XXI, qualquer tipo de confusão entre religião e Direito. É no
que acredito.
Edson Perrone
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